por Henrique Leite, partner do Canary
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Nunca houve uma época tão boa para empreendedores e empreendedoras ambiciosos na América Latina. Pode parecer difícil ser otimista ao se olhar para as manchetes nos últimos tempos, mas não há precedentes em termos de oportunidades para quem tem a visão de resolver problemas significativos e criar negócios de relevância na região. Há uma combinação histórica de fatores que me permite fazer essa afirmação.
O mais evidente deles é como a pandemia da covid-19 acelerou a digitalização da economia. Antes de aprofundar nesse ponto, é claro que a crise está sendo o momento mais dramático que minha geração já viveu. Nascido em 1991, eu era jovem demais para internalizar a hiperinflação brasileira no início da década de 90 ou as demais crises que abalaram o continente entre o final dos anos 90 e começo dos 2000. Minha juventude — entre os anos de 2000 a 2012 — me prometeu para a idade adulta um país que abandonaria a pecha de “país do futuro”. Um país jovem, de economia pujante, capaz de combater suas desigualdades de uma forma original (e alegre) e no qual o futuro se tornaria o presente.
Não foi o que aconteceu: nos últimos anos, o Brasil viveu “todo dia um 7 a 1 diferente”, em diferentes campos (inclusive no de futebol). O principal deles foi a crise econômica que surgiu de 2014 para cá, um terreno fértil para que a covid-19 atingisse em cheio a economia local, com destaque para pequenas e microempresas, além das mais de 550 mil vidas perdidas aqui. Na América Latina, as mortes já somam 1,3 milhões de pessoas. Em respeito a esses tristes fatos e aos familiares que perdi durante o período sem poder me despedir, não há como ignorar que os impactos negativos gerados pela pandemia são irreparáveis.
Entretanto, acredito que toda crise é catalisadora de transformações sociais e alguns aspectos têm contribuído para o atual desenvolvimento do ecossistema de tecnologia na América Latina. Além da digitalização da economia expressa em vários indicadores, sendo o mais acachapante deles o aumento da penetração do e-commerce, há o fato de que hoje há capital disponível para grandes projetos em nível inédito na história do continente. E com este capital, permite-se a viabilização do terceiro fator: a quantidade de talentos não só capazes, mas também inspirados e interessados em promover mudanças.
Startups bem sucedidas são aquelas capazes de resolver um problema grande, que afete de forma profunda a vida das pessoas. Nesse quesito, a América Latina é um prato cheio de oportunidades. São 650 milhões de habitantes, muitos deles jovens, falantes de um mesmo idioma, já digitalizados e ávidos por soluções simples e econômicas. A despeito das particularidades de cada país, há um grande conjunto de desafios comuns à região, como alta burocracia, urbanização complexa, desbancarização e falta de acesso a inúmeros serviços, como saúde, educação, saneamento e segurança.
A tecnologia é uma ferramenta capaz de sobrepor muitos desses desafios, ajudando negócios a ganharem escala. Mas sozinha ela é incapaz de gerar mudança. É preciso ter capital disponível para que ela possa ter amplitude e incentivo. Historicamente, em uma balança de poder entre capitalistas e empreendedores, os capitalistas sempre tiveram muito mais poder na região. Elevadas taxas de juros faziam o custo de oportunidade ser muito alto, deixando pouco capital disponível para empreendimentos ambiciosos. Hoje, o cenário se inverteu: o movimento de liquidez global fez com que nunca houvesse tanto dinheiro disponível para novos negócios.
Além disso, é preciso ter gente boa ao seu redor para avançar. Felizmente, os primeiros exemplos de sucesso de negócios inovadores na região inspiram cada vez mais talentos a ter uma carreira em startups — algo impensável há uma década, quando o sinônimo de ser bem sucedido era ter um bom emprego num banco ou numa consultoria.
Nos últimos dez anos, vimos um crescimento vertiginoso de companhias de tecnologia latinas. O market cap de empresas latinoamericanas de tecnologia como percentual do PIB vem crescendo 65% ao ano desde 2003. Para muita gente, ainda é novidade ver que uma startup é capaz de levantar R$ 1 bilhão ou mais em investimentos. Há quem veja nesses números um sinal de que o mercado já está saturado. Ou ainda, de que há uma bolha.
Mas ainda estamos no começo de tudo: hoje, o market cap das empresas de tecnologia da América Latina como percentual do PIB ainda é uma fração da proporção vista nos mercados americano, chinês ou mesmo indiano. Independentemente da forma como a economia da região se comportar nos próximos anos, é possível perceber que há um grande espaço de crescimento por aqui. Além disso, há sintomas que reforçam a percepção de que a tendência será de longo prazo. Entre eles, destaco a enorme demanda por ações de tecnologia nas bolsas locais e a tendência de vários importantes fundos de investimento, há poucos anos exclusivamente expostos a empresas listadas, agora alocarem fatias maiores de seu capital em ativos privados.
Parte do meu trabalho no Canary é conversar com investidores globais, de diferentes geografias. Nos últimos meses, tive várias conversas que demonstraram o apetite de fundos por negócios na América Latina. Em muitos desses papos, ouvi de meus pares no exterior que algo que lhes agrada na região é a ambição dos empreendedores e empreendedoras — e quanto maior é essa ambição, maior é o potencial de atração de capital de um negócio.
No meu dia a dia, fico bastante empolgado por poder acompanhar e ajudar nos primeiros passos de fundadores e fundadoras com essas visões ambiciosas. Exemplos não faltam. Novos modelos de logística e pagamentos permitem o acesso inédito de diversas camadas da sociedade ao e-commerce, como tem feito a Facily. Enfrentando incumbentes, empresas como a Buser estão reinventando setores importantíssimos para a região, como o transporte rodoviário de passageiros. E como investidores, nos orgulha muito ver e apoiar empresas que já endereçam seu olhar para toda a região, como é o caso de Clara, Cobre, Flourish e Quansa.
Aqui no Canary, estamos animados com esse desafio. Entendemos que capital e talento são forças desproporcionalmente relevantes para a construção de grandes empresas e nos provocamos todos os dias para buscar novas maneiras de abordar esses dois assuntos. Do lado de talentos, nos últimos 18 meses, ajudamos nossas investidas a contratar mais de 30 heads e C-Levels na região. Mais de uma vez, conseguimos apoiar as empresas a atraírem seu primeiro talento em um país da região que buscam começar a explorar, em posições-chave como country manager ou vendas. Além disso, fico muito feliz em destacar que, desde que começamos, as empresas que investimos já geraram mais de 4 mil empregos na região.
Do ponto de vista do capital, temos conversas recorrentes com dezenas de fundos globais todos os meses, a fim de conectar nossas investidas e ajudá-las em suas captações. Desde que iniciamos o Canary, hoje temos 37 empresas com investidores top-tier mundial, incluindo parcerias com a16z, DST, Tiger Global, Dragoneer, QED, SoftBank, entre muitos outros. Já tivemos mais de 50 rodadas de capital subsequentes às que nós participamos nesses últimos 4 anos, sendo 17 apenas esse ano. Isso se traduz em US$1,5bi já levantados pelas empresas que investimos por aqui. Além disso, também estendemos nossos esforços a outras frentes, tais como dados, conexões com grandes empresas, branding e PR, pois acreditamos que elas também podem trazer auxílio substancial a empreendedores e empreendedoras ambiciosos, além de muitas pesquisas e insights que buscamos gerar por aqui para auxiliá-los na jornada.
Já ouvi muito por aí que ter uma ambição grande ou pequena dá o mesmo trabalho. É melhor ainda quando esse sonho não se limita a um só país, sendo capaz de alcançar todo um continente. E o melhor jeito de começar a concretizar essa visão é fazendo, aqui e agora, na América Latina. Como disse Kofi Annan, o secretário geral da ONU, no vídeo linkado no início deste texto, “tomorrow begins today”. O amanhã começa hoje.