Desafios e primeiros passos de uma healthtech com foco em autismo no Brasil

Canary
6 min readOct 28, 2020

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Uma conversa com Kenny Laplante, founder da Genial Care

O setor de saúde deve ser profundamente transformado nos próximos anos com o surgimento de novas startups e soluções capazes de resolver grandes dores do segmento no Brasil. É o que aponta o estudo Latin America Digital Transformation Report, desenvolvido pelo Atlantico, fundo de VC irmão do Canary.

Como aconteceu com o sistema financeiro, a combinação de insatisfação do cliente e flexibilização regulatória tem criado um terreno fértil para impulsionar a disrupção na saúde, o que foi acelerado com a pandemia da COVID-19. Hoje, o país já soma mais de 540 healthtechs, metade delas com menos de cinco anos de operação e no early stage, de acordo com uma pesquisa do Distrito. Ainda que os desafios sejam enormes, há espaço para outros players e muitos problemas a serem atacados por startups.

A Genial Care surgiu com um objetivo bem específico e uma ambição gigante — e fundamental: quer melhorar o atendimento e a educação a crianças com TEA (Transtorno do Espectro Autista). Para isso, pretende criar instrumentos, capacitar e apoiar as famílias, de modo que os pequenos tenham mais qualidade de vida e autonomia. Estima-se que há mais de 4 milhões de pessoas com autismo no Brasil, mas ainda há poucos estudos completos sobre o perfil dessa população, principalmente sobre os cuidadores.

Desenvolver uma pesquisa aprofundada sobre o tema, aliás, foi outra tarefa que a startup tomou para si, na tentativa de entender esse mercado com mais propriedade. O estudo Cuidando de quem cuida: um panorama sobre as famílias e autismo no Brasil em 2020 ainda está em andamento, mas já trouxe bons insights ao founder, o administrador Kenny Laplante, que conta com uma equipe multidisciplinar para tocar o negócio. Hoje, são sete integrantes, com focos diferentes: de produto a operações, comunicação e clínico.

Kenny, que começou sua carreira como investidor, em Nova York, bateu um papo com o Canary sobre o caminho que tem percorrido para chegar até aqui. Também falou sobre seus aprendizados e deu dicas para novos fundadores.

P: Me conta um pouco do seu background?

Eu comecei a minha carreira num ambiente bem tradicional em Nova York, no Wall Street. Eu era investidor na área de saúde em um fundo chamado General Atlantic, e foi lá que realmente me formei como profissional. Eu tinha colegas e mentores que me ensinaram muito sobre a área de saúde e modelos de negócios, e alguns são meus mentores até hoje. Nessa trajetória, tive a sorte de acompanhar muitas empresas de perto, algumas investidas e algumas não, o que me ajudava a ter uma visão geral sobre a área de saúde. Era uma terra fértil para quem queria aprender.

P: Por que você decidiu fundar a Genial Care?

Como investidor, procurávamos duas coisas em empresas: (i) grandes problemas; que (ii) tecnologia e desfechos clínicos podem resolver.

Eu estudava os problemas de intervenção e educação para crianças — especialmente crianças autistas. Foi uma área que eu tive certa afinidade pessoal, pois na minha infância eu necessitava de muita ajuda, por causa de um atraso de fala. Apesar de eu ser considerado uma pessoa neurotípica, essa convivência com intervenção precoce me ajudou a perceber a importância disso, que é mais relevante ainda para famílias que convivem com o autismo. A General Atlantic acabou investindo numa empresa que trabalha com Transtorno do Espectro Autista (TEA) nos EUA.

Em 2017, mudei de país e de carreira, buscando um desafio diferente, que teria mais impacto humano. Havia visto tantas famílias pouco servidas nos EUA, que necessitavam de educação especializada, e percebi que o problema era ainda maior no Brasil. Pensei em aplicar a mesma lógica para investidor como empreendedor: usar a tecnologia para atacar um grande problema e, ao mesmo tempo, ajudar pessoas.

Daí nasceu a ideia da Genial: de criar um espaço de educação para famílias e para que todas as crianças possam alcançar seu potencial. As famílias que convivem com autismo são particularmente pouca servidas, pois falta apoio especializado para eles e educação baseada em evidências científicas. A tecnologia pode ajudar muito nisso, tornando mães, pais e professores em especialistas na educação das crianças.

P: Quais são os principais desafios que você tem encontrado com a Genial Care?

A tensão entre velocidade e rigor.

Somos uma empresa de tecnologia, mas também de saúde e educação. No setor de tecnologia, se fala de “MVP”, velocidade, e “fail fast”; mas serviços de saúde exigem rigor. A nossa barra de qualidade é mais alta.

Na Genial, não falamos de “MVP”: tudo que prestamos para as nossas famílias precisa ser baseado em evidências científicas. Trabalhamos com a coisa mais preciosa e delicada para as nossas famílias: o desenvolvimento dos seus filhos. Se trata de um serviço humano. Então não adianta trabalhar com produtos minimamente viáveis: as famílias merecem mais que isso. Levamos isso muito a sério. Significa que precisamos criar processos com qualidade assegurada, comitês de ética e revisão clínica.

Começamos com isso desde o início, formando um Conselho Clínico composto por algumas especialistas em ciência e autismo. Isso é trabalhoso, mas, a longo prazo, acredito que vai valer a pena, tanto para as nossas famílias, quanto para o negócio.

P: Vocês têm feito um estudo bem aprofundado sobre autismo no Brasil, um tema que ainda é pouco comentado por aqui. Pode contar um pouco sobre esse estudo, como ele foi feito e qual é a sua importância?

Quando se fala de autismo, às vezes as pessoas pensam em uma coisa que não reflete a realidade. Pensam que autismo é uma coisa só, ou que só tem desafios — se esquecem que pessoas com autismo são pessoas, com todas as suas potencialidades e particularidades. No estudo, derrubamos algumas dessas crenças. A partir de centenas de relatos, temos conseguido provar que cada família é única e cada pessoa é única — seja autista, seja neurotípica; e todos têm suas potencialidades e desafios. Outra coisa pouca entendida é a figura do cuidador, que muitas vezes é esquecida. Por isso, centralizamos o estudo no cuidador e nas suas necessidades e potencialidades, e não somente na criança.

Tem algumas perguntas no estudo que colocamos para fazer o cuidador pensar e refletir. A minha parte favorita do estudo é a que pedimos para os cuidadores compartilharem seus maiores aprendizados. As respostas que recebemos foram incríveis. Mas a melhor delas, para mim, foi bem simples: “minha filha é capaz de qualquer coisa, porém terá que trilhar um caminho diferente das crianças neurotípicas”. É isso mesmo. Por isso que estamos aqui, para ajudar as famílias e as crianças a trilharem esses caminhos extraordinários.

P: Como esse estudo tem sido relevante para a Genial Care traçar e entender melhor o seu modelo de negócios?

O estudo está ajudando muito na criação do nosso produto. Nosso primeiro foco é capacitação parental. A ciência de aprendizagem mostra que os pais podem ser agentes de transformação na educação dos seus filhos. Na verdade, eles já são os melhores professores deles. É natural e inevitável que os pais ensinem. A questão é: como garantir que esses momentos naturais de infância sejam enriquecedores? Queremos criar mais e melhores momentos de ensino. E, por enquanto, estamos fazendo isso por meio de capacitação parental.

Para ajudar pais, é fundamental co-criar junto com eles. Isso até aconteceu com o desenvolvimento do próprio estudo: na construção dele, envolvemos algumas mães e pais para melhorar a qualidade e a humanidade do estudo. E agora, apesar do estudo ainda estar em andamento, já estamos analisando os resultados e usando seus insights para desenvolver um serviço mais acolhedor e relevante para esses cuidadores.

P: Qual foi o seu maior aprendizado com a Genial Care até aqui? Que conselhos você daria a outros founders?

Como fundador, construir um time é o seu maior desafio. No nosso caso, somos uma empresa que cruza várias esferas: produto, design, tecnologia, clínico, comunidade e conteúdo. Então, tem sido bastante desafiador e divertido construir esse time.

Acho que demorou mais do que eu imaginava (e ainda está em construção), mas eu não tenho dúvida nenhuma de que a paciência valeu a pena. O time que temos é sensacional: cada um é capaz de treinar, mas agora cada um está atuando como jogador. Nosso time também é bem diverso: estamos em 7 pessoas, e já representamos 3 países, são 4 mulheres e 3 homens.

Com tudo isso, meu conselho para outros fundadores é: start building your team early! (comece a construir seu time primeiro). Esse é o seu maior dever como fundador, e ele precisa ser priorizado e bem-feito, sempre com paciência.

O estudo Cuidando de quem cuida: um panorama sobre as famílias e autismo no Brasil em 2020 segue aberto. Você pode contribuir — e muito — ao compartilhar com a sua rede de contatos.

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Written by Canary

Parceiro dos melhores founders na América Latina. Por aqui, compartilhamos os principais aprendizados de empreendedores(as) investidos(as) e de nossa rede.

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