Edtechs: como usar a tecnologia a serviço de uma inovação pedagógica real?

Canary
9 min readJan 12, 2021

Uma conversa com o cofundador e CEO da Letrus Thiago Rached

De acordo com dados mais recentes da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), a taxa de analfabetismo no Brasil é de 6,6%. Em um País com 11 milhões de analfabetos, chega a ser um clichê dizer que há ainda muitas dores a serem resolvidas na educação. Mas, de fato, há. O índice representa apenas um dos problemas do setor, tão amplo quanto complexo.

Muitas edtechs têm surgido nos últimos anos, com soluções para diferentes segmentos e pontos da cadeia. E a tendência é de alta. O estudo Transformação Digital na América Latina, desenvolvido pelo Atlantico (fundo irmão do Canary), aponta que, ao lado da saúde, educação deve ser a área que irá sofrer mais transformações nos próximos anos. Só para exemplificar, o ensino à distância cresceu dez vezes de 2009 a 2019 no País.

Se o terreno para a disrupção no setor já era fértil, com a pandemia da Covid-19, esse processo se intensificou. A crise tem impulsionado diversas instituições de ensino a buscarem novas tecnologias de forma mais acelerada, o que deve levar ao surgimento de novas startups com foco em educação.

Já com alguns anos de estrada, a Letrus tem muito a ensinar a futuros empreendedores que querem investir no setor. Criada por Luis Junqueira e Thiago Rached, a empresa oferece um programa que une inteligência artificial a conhecimento linguístico e acompanhamento pedagógico humano, para auxiliar professores na avaliação de redações e alunos no desenvolvimento da escrita. Mais de 115 mil estudantes já foram impactados pelo sistema.

Essa possibilidade de impacto foi um dos fatores que fizeram Thiago se apaixonar pelo projeto. Apesar de ter começado sua carreira com foco em business (Thiago é formado em administração pela USP), desde a adolescência, sempre teve um vínculo com educação e participou como voluntário em iniciativas sociais ligadas ao tema. Mas foi apenas ao atuar como investidor em um fundo de VC, que percebeu ser possível unir dois interesses: empreendedorismo e educação. Nesse meio tempo, se reaproximou de Luis, que já era seu amigo e hoje é seu sócio.

Em 2016, surgiu o primeiro protótipo do que viria a ser a Letrus. Em 2020, a empresa se tornou a primeira organização brasileira a ganhar o Prêmio Internacional da UNESCO, que a reconheceu como a tecnologia educacional mais transformadora do mundo junto a uma solução espanhola. Confira abaixo a íntegra da conversa:

P: Como surgiu a ideia de fundar a Letrus?

A Letrus surgiu da visão do Luis, meu sócio. Ele, como professor de português, sentiu na pele o desafio que é ajudar os alunos a aprenderem a ler e a escrever.

A rotina de um professor hoje no Brasil, de maneira geral, é insana em termos de carga de trabalho. E está inserida em uma lógica ainda bastante conteudista, que não olha para a aprendizagem de uma maneira individualizada.

A partir de uma experiência que ele teve com um projeto chamado Primeiro Livro, no qual os alunos escreviam um livro ao longo do ano letivo, percebeu o potencial da tecnologia de transformar a atividade de escrita em um processo mais significativo, mais colaborativo e mais inteligente. Daí surgiu a visão da Letrus, que é, em essência, aplicar inteligência artificial e humana para o desenvolvimento do letramento. O conceito básico do letramento é a capacidade de escrita e leitura das pessoas; é ser capaz efetivamente de dominar a linguagem e fazer uso dela para o desenvolvimento mais global de cada um.

P: Quais são as especificidades de estar à frente de uma edtech?

Construir uma edtech tem algumas especificidades. Primeiro, é preciso entender que educação é um setor muito amplo, com vários segmentos. A gente pode falar de ensino superior, de educação adulta não regulada, de educação infantil, idiomas, corporativo… E a gente pode falar de educação básica, que compreende da educação infantil até o final do ensino médio e é, portanto, o segmento mais amplo, com mais pessoas envolvidas.

Falando especificamente de educação básica, que é onde se concentra uma grande parte das startups de educação, um dos maiores desafios é saber navegar o ecossistema. Enquanto em vários outros ecossistemas há apenas um ou dois stakeholders essenciais, na educação básica é mais complexo. Há vários stakeholders, e é fundamental você conquistá-los para ter sucesso no negócio. Você tem, por exemplo, os gestores das escolas — diretores, mantenedores, coordenadores — os professores, os alunos e as famílias — e cada um tem demandas e perfis específicos. E há diferenças muito claras desses perfis também quando se fala de escola privada e escola pública. Na escola pública, ainda há a figura dos gestores públicos.

O desafio é, de alguma maneira, conquistar a todos ou pelo menos garantir o endosso deles. Se algum se opuser à sua ideia de alguma maneira, você não sobrevive. Então, a grande questão é como criar um produto que atenda a públicos diferentes, com dores diferentes, e se manter relevante ao longo do tempo para todos eles.

Outro desafio grande é o setor público. É muito difícil ainda ver negócios tendo sucesso ou até sustentabilidade nesse espaço, pelo fato de o setor público não apresentar uma regulação clara sobre aquisição de inovações e tecnologias educacionais.

Outro ponto relevante para as edtechs está relacionado ao foco do produto. Uma coisa é entregar um produto que funcione e outra, é entregar um produto que gere aprendizagem superior de fato. Eu acho que essa é uma outra complexidade que a gente vê sendo subestimada no setor.

Muitas vezes a gente vê soluções que tentam digitalizar algo que já exista no offline, como por exemplo videoaulas, livros, controle de notas e horários etc. São alternativas a soluções que já existem, que estão estabelecidas, e pode fazer sentido incorporar o digital porque traz agilidade, menor custo de serviço e acesso a dados. Mas não necessariamente essas soluções conseguem impactar na aprendizagem. Então acho que as edtechs podem se debruçar em como construir algo que vá além da digitalização e possa tocar o aspecto pedagógico, com técnica, ciência e relevância para alunos, professores, educadores e para o resto do ecossistema.

P: Como você avalia o cenário de edtechs atualmente no Brasil? Há espaço para outros players?

Acredito que o mercado de tecnologia educacional no Brasil está no começo de uma onda muito relevante que está por vir. A gente teve o primeiro ciclo de investimento em edtechs há uns 9 anos, com as primeiras startups mais reconhecidas surgindo no Brasil em 2011, 2012. A maioria não se tornou uma grande empresa. Mas elas foram validadoras e geradoras de muito conhecimento para uma segunda onda, que começou há alguns anos.

Nessa segunda onda, a gente vê empreendedores mais bem preparados, modelos validados em algum grau. O que a gente não tinha tanto ainda estabelecido era um mercado, uma demanda tão clara e gritante como a gente tem hoje, especialmente quando se olha para um contexto de pandemia.

A pandemia obviamente foi horrível, mas olhando pelo lado de negócio em educação, está levando as escolas a uma adoção de tecnologia muito mais acelerada. Não só as escolas de educação básica, mas todos os players do setor estão buscando soluções híbridas e digitais para conseguirem não só se manter, mas também crescer.

A gente tem uma demanda por tecnologia em nível nacional que nunca existiu antes. Quando a gente olha para as soluções hoje disponíveis, uma boa parcela delas ainda tem um olhar mais de eficiência, de digitalizar o que já existe. Como a gente digitaliza uma prova, uma aula, um boletim? Acho que é um movimento natural para o estágio atual do setor.

Mas existe uma oportunidade de não só substituir o físico pelo digital. Com gerações cada vez mais digitais, existem grandes oportunidades de olhar para tecnologia não só como viabilizadora de uma experiência offline, mas principalmente de transformação das experiências educacionais. Como a gente olha para a tecnologia tentando inovar do ponto de vista pedagógico? Como a gente consegue aplicar tecnologia, IA e dados para levar o aluno a um nível educacional de desenvolvimento muito superior do que ele teria em uma experiência offline? Acho que esse é o grande desafio. Esse movimento ainda é incipiente e enxergo grandes oportunidades nesse lugar.

Falando do setor como um todo, acho que a gente ainda não aprendeu a olhar para a tecnologia com esse viés pedagógico estratégico. Existe uma oportunidade gritante aí, que tem um desafio grande de inovar em um setor bastante tradicional. Mas vejo isso acontecendo uma vez que você consegue provar valor na ponta, para alunos e professores. Uma vez que você consegue entregar valor por meio de inovação, você vê que essa tecnologia pode ser adotada com alto nível de engajamento e um impacto de aprendizagem real.

P: Quais foram os principais desafios que encontrou até aqui como co-founder da Letrus?

O primeiro grande desafio que a gente enfrentou na Letrus foi como vender um produto que as escolas não estão acostumadas a consumir. A gente construiu um programa para desenvolvimento da escrita, de produção de textos, baseado em inteligência artificial. Esse programa orienta alunos e professores ao longo da jornada educacional, permitindo ajudar os alunos e professores a entenderem o que de fato é mais importante na trajetória de aprendizagem — de cada um, individualmente, e das turmas, coletivamente.

Enfim, a gente foi para o mercado com uma proposta que não era nada convencional. Chegamos na escola e falamos: seus alunos não vão escrever no papel, vão escrever no computador; não vai ser o professor que vai corrigir, uma IA vai fazer a análise de texto do aluno; depois que essa análise for feita, segue para o professor, que vai ter um relatório super aprofundado com o perfil de escrita dos alunos.

Todas essas inovações que a gente criou eram muito disruptivas para as escolas, era mudar por completo o processo de produção de texto. Então, o grande desafio inicial que a gente teve, e continua tendo e aprimorando, é como empacotar nossa proposta de valor para as escolas para que ela seja palatável.

Depois vem crescimento. Como crescer, tanto no setor privado como no público, de uma maneira sustentável? Não basta um esforço de marketing tremendo, mas é preciso pensar em como a gente consegue se posicionar como referência no que faz e, além disso, em como construir relações de longo prazo com as escolas clientes.

P: Quais aprendizados você pode compartilhar com outros founders?

Falando especificamente sobre educação básica, acredito que conquistar os educadores é um fator muito chave de sucesso. Tem uma tendência natural de olhar para o aluno, que é quem você mais quer impactar com o seu produto, mas a sobrevivência do negócio está muito relacionada a quanto você consegue conquistar os professores e, eventualmente, os coordenadores pedagógicos. Um produto que está inserido na rotina de uma escola vai ter os educadores como pessoas essenciais para poder funcionar. Olhar para os educadores é muito importante.

É preciso também entender que educação é um negócio de longo prazo, principalmente quando se trata de educação regulada. E tem algumas características: o ciclo de venda é longo, 2 a 8 meses e tem uma sazonalidade forte no segundo semestre.

Dependendo do modelo de negócio, tem um desafio de potencial de gastos das escolas. Acho que entender bem como o seu produto se encaixa no ecossistema e como ele gera valor para os stakeholders de maneira individualizada é muito importante. Cada stakeholder tem uma dor específica. O mantenedor tem uma dor essencial de matrícula. Como seu produto ajuda esse profissional a aumentar as matrículas? O professor tem uma dor que é uma carga de trabalho insana. Como você o ajuda a ter uma rotina mais leve? Para o aluno, como conseguir uma experiência que seja significativa, interessante e gere engajamento? Ter esse olhar de construção de produto, entendendo a proposta de valor individualizada para cada stakeholder, fazendo boas validações e bons testes, antes de sair vendendo em escala, é algo que a gente aprendeu bastante aqui na Letrus e tenta replicar para novas iniciativas e produtos que a gente vem lançando.

P: Em 2020, a Letrus se tornou a única organização brasileira da história a ganhar o Prêmio Internacional da UNESCO. Como foi 2020 para a Letrus e quais são os planos para 2021?

O prêmio da UNESCO foi uma surpresa muito positiva para nós, dado o reconhecimento da instituição e a relevância do prêmio. É um prêmio global e o mapeamento é feito por todos os escritórios do órgão ao redor do mundo.

2020 para nós foi um ano duro no começo. A gente tinha um modelo de crescimento baseado em abordagem direta das escolas que, do dia para a noite, secou. A pandemia afetou diretamente a nossa capacidade de crescimento incialmente.

Mas a gente foi vendo, ao longo do ano, uma demanda crescente por parte das escolas, grupos e instituições por uma solução mais inteligente e de maior impacto educacional, como a Letrus. A gente fechou o ano com novas parcerias e novos contratos.

A gente olha para 2021 como uma grande oportunidade, dado que hoje as escolas estão adotando um modelo híbrido ou digital como seu principal caminho para o ano, e provavelmente para além da pandemia. A gente está prevendo um nível bem maior de crescimento esse ano.

Hoje, a Letrus é muito mais uma enabler do que um produto stand alone. Estamos buscando parcerias estratégicas para alcançar um mercado-alvo mais relevante deste ano em diante e estamos bastante animados com o nosso produto para o fundamental 2. Até o ano passado, o foco estava só no ensino médio. Para a gente, é uma oportunidade não só de negócio, mas de impacto também: poder atender professores e alunos em uma fase anterior do desenvolvimento da capacidade de escrita permite reduzir ainda mais a defasagem de aprendizagem dos nossos estudantes atendidos.

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