No início do segundo trimestre de 2020, o impacto da Covid-19 no business da DogHero poderia ser resumido em uma pergunta: com todo mundo em casa, quem vai precisar de pet sitters ou hospedagem para os bichinhos de estimação?
Esta não foi a primeira turbulência enfrentada pelo engenheiro e co-fundador da startup de hospedagem, creche, visitas e passeios para pets. Fernando Gadotti trabalhava no mercado financeiro quando a crise de 2008 se desenrolou. As lições aprendidas ali e implementadas agora, na pandemia, são sobre como estar preparado(a) para ir de um contexto de extremo otimismo à, no pior dos mundos, beira do abismo. De uma hora para a outra.
Em um Canary Talks realizado logo no início da quarentena (abril/2020), ele deu conselhos valiosos, que vão desde redução de custos a posicionamento de marca. Apesar do contexto, estes são insights atemporais — crises viram o tabuleiro do jogo sem aviso prévio, é bom estar preparado — , especialmente para modelos que requerem olhar atento e constante ao runway. Ainda que cada uma delas seja única (e já conversamos sobre esta que atravessamos), crises trazem ensinamentos que se perpetuam. E porque cada uma é única, a receita de bolo varia de caso para caso. Mas quem sabe dê para guardar alguns ingredientes na manga, na mente e nas planilhas do Excel.
Aqui vão os destaques da conversa:
Soft Skills em prática
Junto à falta de capital, desentendimentos entre os integrantes do founding team estão na lista de principais problemas que levam à morte de startups. Numa crise, é comum que todos estejam à flor da pele, discussões podem aumentar. O nível de tensão está mais alto para todo mundo. Fora que momentos difíceis acentuam e aceleram problemas do business que não eram prioridade até então, tornando-os mais latentes e, talvez, urgentes.
O momento coloca à prova a relação entre fundadores(as), as habilidades e o emocional de cada um(a) em manter bons relacionamentos com sócios, time, clientes e investidores - o negócio precisa seguir rodando apesar dos percalços pessoais e profissionais. Também testa a empatia de todo mundo: você nunca sabe exatamente pelo que as pessoas estão passando. Eis uma chance de tentar se aprofundar no mundo delas. Temporadas difíceis podem unir ou destruir uma equipe, vale cuidar para que o último não aconteça. É uma tarefa para founders liderarem. Afinal, it's all about people!
“Em momentos difíceis, é quando a gente realmente vê onde os problemas acontecem. Por isso é muito importante ter um bom alinhamento e comunicação entre os sócios e com os investidores também”, diz Fernando. Vale dividir situação e planejamento de caixa com eles. Você não sabe de onde boas ajudas e/ou conselhos podem vir.
Caso ainda não tenha, pode ser hora de montar um co-founder contract, definindo regras, direitos e deveres entre os sócios daqui para a frente.
Redução de custos e foco em runway
Se você está dirigindo um carro com pouco combustível e não sabe quando vai conseguir reabastecer, é quase instintiva a decisão de economizar o tanque e chegar o mais longe possível. Não é a hora de acelerar sem necessidade. Ar condicionado? A não ser que você esteja preso no deserto do Saara e, mesmo assim, racionando o uso do aparelho.
O objetivo a essa altura é pensar em quantos meses de caixa você tem pela frente, no caso de sua receita cair muito.
Mesmo quem viveu uma situação favorecida pela quarentena (setores como gaming, delivery e serviços 100% online cresceram durante a pandemia), deve tomar cuidado para não apressar o passo demais, e acabar reduzindo o runway. Mantenha a velocidade segura para a saúde da empresa.
“Tudo ainda é incerto e sempre há dúvidas quanto às mudanças de comportamento da sociedade”, diz Fernando.
Uma analogia simples e cotidiana: quando para de chover, ninguém mais compra guarda-chuva na saída do metrô. Não aposte todas as fichas em um produto/serviço que só performa bem por causa da crise. Entrevistas, NPS e pesquisas com os clientes podem ajudar um bocado aqui!
Para quem acaba de levantar uma rodada de investimento, o conselho é o mesmo. Foque em melhorar o produto, entender seu consumidor, otimizar operações e cuidar das finanças. Gaste energia organizando o caixa com eficiência, mirando o longo prazo.
Estratégias para cortar gastos
Dicas de Fernando Gadotti
- Antes de mais nada, organize os custos. “Nesse momento, é preciso categorizar e entender o que realmente é custo fixo e o que é variável, para então cortar o que não é extremamente necessário para a sobrevivência do negócio”, diz Fernando. É triste dizer, mas colaboradores também entram na conta de despesas que podem ser potencialmente evitadas. Algumas funções, simplesmente, acabam tornando-se "supérfluas" em tempos difíceis. Seja gentil e decente com aqueles que compraram o sonho da sua empresa mas, infelizmente, não continuarão na jornada.
- Analise e otimize os custos variáveis. Ações de marketing são um bom exemplo de investimentos pouco eficientes que poderiam ser cortados. Vale se perguntar: quais são as iniciativas que mais impactam na taxa de conversão? Como consigo mais alcance?
Um exemplo do Fernando sobre gastos encarados, a princípio, como fixos, mas, após análise, identificados como variáveis:
“Algumas notificações que enviávamos não fazia sentido manter. Não aumentavam conversão e geravam gastos. Resolvemos cortar”.
É fundamental a análise de growth sobre cada canal (e dá-lhe, planilhas e tags).
- Porém atenção: cortar investimentos no topo de funil pode ser bom no curto prazo, mas é capaz de gerar mais custos em estágios avançados. É uma tática que deve ser bem avaliada:
“A gente começou cortando topo de funil, porque tem mídias mais caras e menos eficientes, em geral. Por outro lado, se você não as usa, não oxigena todo o seu funil e o fundo fica mais caro depois de um tempo. É uma estratégia que não dura muito”.
- Fernando também recomenda tentar reduzir o payback de investimentos de marketing. Em outras palavras: optar por canais cujo retorno virá em até dois ou três meses. Essa ação já vai refletir no burn, principalmente de empresas no early stage. “Se você tem um payback muito longo, provavelmente, está queimando [o budget para a aquisição de] novos clientes”, explica.
- Coloque o lado esquerdo do cérebro para funcionar e imagine formas diferentes e carinhosas de engajar, sem altos custos, os parceiros que já estão comprados com sua empresa (redes sociais e email marketing são uma boa pedida). Lembrando que investir em conteúdo relevante é estratégico para manter o seu público por perto e com a sua marca na cabeça.
Para o negócio ficar ainda mais saudável financeiramente, a DogHero apostou em iniciativas orgânicas e em retenção no início da quarentena. O time de marketing criou estratégias para definir prioridades e decidiu dar trégua aos posts patrocinados. Mirou forças em conteúdos editoriais para o blog, recheando-os com SEO. A iniciativa aumentou o número de acessos ao site e manteve a relevância da empresa (em termos de branding e engajamento) entre os clientes.
Priorizando canais
Uma startup precisa conhecer bem as plataformas por meio das quais seus consumidores ou clientes se comunicam. Quando a grana está curta durante um chacoalhão do mercado, duas métricas ajudam a definir prioridades: CAC e payback.
Plataformas com menor conversão perdem relevância. O Facebook pode se tornar menos importante, já que anuncia para muitas pessoas e são poucas as que clicam num anúncio no meio da timeline ou que estão, efetivamente, em busca de um serviço ou produto (saturação de redes socias que chama). O Google, por outro lado, mostra-se como aposta um tanto mais segura, já que provavelmente levará tráfego de usuários realmente interessados (de novo, SEO).
Mas a regra varia de startup para startup. Pense estrategicamente e invista em cada canal com o objetivo de melhorar os dados que são relevantes para o negócio. Não adianta criar um Tik-Tok se o seu público está majoritariamente no Facebook.
A DogHero, durante a crise, manteve o número de provedores de serviço, mas verificou uma quantidade menor de donos de pets dispostos a utilizarem o marketplace. Canais destinados à conversão de clientes que precisavam de uma ajuda com os bichinhos foram priorizados, em relação aos de atração de novos heróis.
Branding nos tempos de cólera
Alguns pontos a se atentar:
- Branding sempre pede adaptações, conforme o tempo e o feedback dos usuários. Já escrevemos sobre o assunto aqui e aqui (fica o convite e a recomendação para quem quiser se aprofundar!).
- Em momentos sensíveis, é essencial ter como regra a empatia a quem está ao seu redor e à base de clientes. Afinal, você não sabe como cada um está sendo impactado pela crise. O mais prudente é tratar a situação com seriedade (sem piadas). Este ano, até o 1º de abril (ou april fools’ day), marcado por pegadinhas de diversas marcas, foi praticamente cancelado — o próprio Google ficou de fora. Não tinha clima.
- É a hora de estreitar laços e trazer informações e atendimento dedicados às peças fundamentais do negócio — com o cuidado de não parecer oportunista. Faz bastante diferença, na percepção do público, passar empatia sobre o momento e também divulgar materiais que ajudem pessoas em variados sentidos (esta é uma crise de saúde pública cujo impacto alcançou diferentes indústrias pelo mundo), contemplando a área de atuação da empresa e tendo como foco o usuário. Conteúdo relevante engaja.
Para seguir fortalecendo o branding na pandemia, o time da DogHero produziu conteúdos que conversavam com os donos de pets E com os heróis.
“O core da nossa estratégia de comunicação sempre foi amor e carinho aos animais e o impacto de um animal de estimação na vida das pessoas. Vem de um lugar muito afetivo”, conta Fernando.
Os posts nas redes sociais e do blog da DogHero sempre foram alinhados a essa missão, mas foi preciso adaptá-los ao contexto, trazendo informações sobretudo úteis para o momento: dados e informações sobre a saúde dos bichinhos em tempos de Covid foram uma das apostas. Para os prestadores, que perderam parte de sua renda com a queda na utilização do serviço, trouxeram conteúdo útil sobre o pacote de ajuda dispobilizado pelo governo.
- Um estudo da BrandZ indica que a força de uma marca é peça fundamental para empresas recuperarem-se mais rápido de crises. Isso ficou claro em 2008 e, agora, em 2020. De 14 de fevereiro a 20 de março deste ano, enquanto o índice mundial da MSCI (Morgan Stanley Capital International, que mede o desempenho do mercado de empresas de grande e médio porte com presença global e em países desenvolvidos) caiu 75%, as 10 marcas mais poderosas tiveram uma queda menor, de 37%, até começarem a subir novamente.
Não é para descuidar de branding, mas encontrar um equilíbrio. Na crise, o foco é runway, runway e payback. Fernando pensaria três vezes antes de fazer uma campanha paga de branding em um momento assim. Há outras formas de consolidar a marca. Valorizar iniciativas orgânicas nas redes sociais é uma delas, mas dá para pensar também em PR, engajamento e atenção com a base de clientes.
Para quem está no early stage, o conselho é investir ainda mais em aperfeiçoar o produto. Crises trazem alguma sabedoria. Por que não coletar feedbacks, ou, quem sabe, desenvolver aquela feature que estava sendo adiada há um tempão, mas que tornaria os usuários mais felizes, por exemplo? Tudo isso é branding! Lembre-se de que uma startup começa a construir marca de baixo para cima no funil.
Sem tensão na aquisição
Com o isolamento social e as mudanças no comportamento do consumidor, pode ser difícil testar seu produto ou serviço e conquistar novos clientes. Para Fernando, é a hora de os founders irem para a trincheira com o time. “Não é para delegar para product manager as entrevistas com clientes”, defende. O founding team tem de estar em contato constante com consumidores, absorvendo feedbacks e tratando problemas que resultaram em feedbacks negativos, detratores e/ou churn.
É legal manter em mente que, durante uma crise, você identificará com mais clareza quem efetivamente precisa do produto, e não está disposto a abrir mão dele de jeito nenhum. Conhecendo melhor o seu mercado específico, dá para atacá-lo com mais força, mesmo após a pandemia.
“Eu não sou da escola ‘o cliente dita o produto’. O founder tem de comunicar a sua visão de mundo e depois realizar essa visão. Nesse contexto de crise, ficou mais fácil de entender quem realmente precisa daquilo que você construiu. Mais do que pensar em como mudar o produto, você tem de estar pivotando o “quem”. É uma oportunidade de compreender quem são essas pessoas e por que elas usam o produto”, diz Fernando.
Leituras para tempos de crise
Indicações que fizeram diferença na trajetória de Fernando Gadotti
- Avalie o que Importa: Como o Google, Bono Vox e a Fundação Gates Sacudiram o Mundo com OKRs, de John Doerr — explica o porquê dos OKRs, com exemplos práticos.
- High Output Management, de Andrew S. Grove — já que estamos falando sobre OKRs, esse é um guia fundamental, ainda sem tradução para o português.
- Crossing the Chasm, de Geoffrey A. Moore — publicado no começo da década de 1990, fala sobre marketing de produtos de alta tecnologia.
- Do sonho à realização em 4 passos, de Steve Blank — trata principalmente de Customer Development. Aliás, Fernando recomenda todos os livros do autor.
- Posts do Medium do David Sacks, General Partner e co-founder do Craft Ventures.
- Podcast Invest Like the Best, com Andy Rachleff — traz conversas com o intuito de ajudar a investir melhor tempo e dinheiro.
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