Rumo ao IPO: dicas práticas com Méliuz e a B3

Canary
11 min readDec 20, 2021

Como se preparar para essa nova fase

O dia era 3 de novembro de 2020. As atenções no mundo inteiro estavam direcionadas para as eleições presidenciais nos Estados Unidos. Na disputa entre Joe Biden e Donald Trump, certamente ganhava a tensão. Enquanto os cidadãos norte-americanos iam às urnas, os mercados do planeta reagiam à incerteza do resultado e às ameaças antidemocráticas do candidato republicano.

Por aqui, na B3, alguns deals caíam por conta da incerteza mundial. A Méliuz, por sua vez, se manteve firme e precificou suas ações para o IPO. “A gente seguiu em frente. Queríamos ter sócios alinhados para o longo prazo e, por isso, buscamos o menor preço para não limitar a nossa capacidade de atrair o investidor certo. Bons fundos ancoraram o nosso deal e trouxemos a base de investidores desejada, o que foi fundamental para o próximo passo: um follow-on 8 meses depois”, conta Luciano Valle, CFO (Chief Financial Officer) e IRO (Investor Relations Officer) da empresa.

Parece o fim de uma história feliz. Não é. É só o começo. Como já mencionamos por aqui, fazer o IPO representa uma nova fase na história de uma companhia, com suas próprias especificidades, vantagens e desvantagens. E é preciso ser muito estratégico para definir quando e como abrir capital na bolsa. Além de ter de lidar com processos burocráticos, é preciso se adequar também a uma realidade em que há mais exposição e cobranças. E quanto antes uma empresa puder se preparar para essa transição para capital aberto ser mais suave, melhor.

Para ajudar empresas na jornada rumo ao IPO, promovemos um evento com o Luciano, o Daniel Sonder, CFO da B3, e a Rafaela Vesterman Araujo, Gerente de Relacionamentos com Empresas da B3, com algumas lições práticas. Aqui separamos os principais aprendizados.

Quando?

“No começo, o sonho é vendido para pouca gente. Depois do IPO, esse sonho está precificado para muita gente, ele tem um alcance muito maior”, diz Luciano. Há muito a se considerar antes do IPO.

O primeiro ponto: quando é o momento certo de lançar-se nessa empreitada? Não há uma fórmula mágica aqui. Vai muito de cada empresa, modelo de negócios, setor e, claro, do nível de maturidade do negócio.

Voltando ao case da Méliuz, a empresa vinha crescendo cerca de 80% ao ano de 2017 a 2019. Se nesse período o negócio se provou, em 2020 o foco estava em garantir mais crescimento e eficiência operacional. Para isso, o primeiro raciocínio foi levantar uma nova rodada de capital. Nas conversas de fundraising, no entanto, começou a surgir a tal pulga atrás da orelha (que, muitas vezes, é o que leva a boas mudanças): não seria melhor abrir capital? “Começamos a tentar entender esses movimentos, quais fundos queríamos ter por perto, com quem falar, e a nos questionar quais eram as preocupações desse novo investidor em relação a um VC”, conta Luciano.

Esse contato com diferentes perfis de investidores é fundamental para bater o martelo e decidir quando seguir com o IPO. Por isso, vale muito a pena construir uma área de RI (Relações com o Investidor) estruturada e forte na empresa desde cedo — e incluí-la nas discussões e decisões estratégicas do negócio.

Em última instância, a área traduz o que a empresa faz para diversos stakeholders. Nesse sentido, não só cultiva relacionamentos importantes para capitalizar a companhia, como colhe feedback e insights que podem ser fundamentais para o seu bem-estar. “Uma área de RI ativa pode antecipar e agregar muita inteligência para a empresa e vai facilitar muito o acesso ao mercado de capitais quando preciso”, defende Luciano.

Tamanho é documento?

Quão grande uma empresa precisa ser para ser listada na bolsa de valores hoje em dia? Não há nenhuma restrição regulatória a respeito do tamanho da oferta. Se há poucos anos, esse parecia um espaço reservado apenas para as gigantes, isso vem mudando.

Em 2021, 60% das companhias que abriram capital têm receita líquida anual abaixo de R$ 1 bilhão. Já em termos de captações, há dois anos era difícil ver oferta abaixo de R$ 500 milhões. Este ano, até o final de novembro, 22% dos IPOs foram abaixo de R$ 600 milhões; 42% abaixo de R$ 1 bilhão. “A título de curiosidade, nos Estados Unidos, o tamanho típico de IPO é de US$ 100 a US$ 120 milhões. Aqui, para isso acontecer, é preciso que haja uma indústria de fundos de investimentos local forte. Investidor internacional dificilmente entra em IPO de pequeno porte, por medo de ficar preso sem liquidez”, explica Sonder.

Tendências — Por aqui, os números são sintomáticos de um movimento mais profundo que o mercado de capitais brasileiro vem atravessando. De 2019 para cá, a bolsa brasileira tem vivenciado uma popularização, com mais pessoas físicas entrando como investidores.

Para se ter uma ideia, no final de 2018, eram apenas cerca de 800 mil contas de pessoas com ações, e o número vinha estacionado em cerca de 500 mil há quase uma década. Agora, já são mais de 4 milhões de contas de investidores pessoa física.

Outra curiosidade: as pessoas estão entrando com valores mais baixos. O ticket médio de entrada (mediana do primeiro investimento) de mulheres está em R$ 385; de homens, em R$ 242, números impensáveis há 3 anos.

Além disso, a partir de 2019, o investidor local tem sido protagonista das ofertas de ações, contrariando o que era visto nos anos anteriores, quando os investidores estrangeiros tinham maior participação.

Houve também uma mudança no perfil das empresas que estão se listando. Antes, setores mais tradicionais reinavam; hoje, tecnologia, telecomunicações e outros setores vêm conquistando cada vez mais espaço. O número de IPOs também aumentou: foram 28 no ano passado e 45 em 2021, até o dia 30 de novembro.

Não restam dúvidas de que o mercado está mais pujante e em ascensão. Qual será o ápice desse movimento? Não há certezas. De todo modo, ainda há muito espaço para o crescimento no número de pessoas físicas com ações nos próximos anos.

São tendências para olhar com atenção, já que, cada vez mais, há um novo perfil de investidor com o qual as empresas de capital aberto terão de se relacionar (voltamos ao assunto abaixo). Muitas companhias B2C estão aproveitando o fato de que esse investidor também é um potencial consumidor, além de possibilitar que clientes se tornem acionistas.

O que é preciso, em termos práticos?

Para se listar na B3, é preciso cumprir uma série de requisitos. Os principais deles estão listados (tu dum-tss) a seguir:

  1. Ser uma S.A.;
  2. Ter 3 anos de balanço auditado por auditor independente registrado na CVM (ou ser auditado desde o começo, para empresas com menos de 3 anos);
  3. Entrar com pedido de registro de companhia categoria A na CVM;
  4. Designar diretor de RI estatutário e ter um conselho de administração;
  5. Identificar eventual segmento de listagem e fazer pedido de listagem na B3;
  6. Definir a estratégia da oferta e entrar com processo de registro na CVM.

Não é um processo rápido ou simples e muitos questionamentos podem surgir ao longo do caminho. A dica do Luciano é: “esteja perto do regulador. Tem que perder o medo de perguntar. A pior coisa é fazer na dúvida”.

Outro ponto prático a ter em mente são os custos. Quanto maior o valor da oferta, menores tendem a ser as taxas de custos do IPO. “Cerca de 80% do custo é a taxa do banco, que é uma comissão que é descontada do valor a ser captado. Há custos também com advogados, auditores, bolsa e regulador”, explica a Rafaela. A média depende muito do valor da oferta. Um estudo da PwC sobre custos de abertura de capital no Brasil e EUA mostra que, para ofertas de até US$ 100 milhões, o custo médio no Brasil é de 5,6% do valor da oferta. Já na faixa acima de US$ 1 bi, o percentual é de 2,5%. Nos EUA varia entre 11,7% e 4,0%.

Depois, para manter uma companhia de capital aberto, há ainda outros custos que precisam ser considerados. Não só há gastos com a área de RI, que passa a ser obrigatória, como também com auditoria independente, publicação de informes, fiscalização (CVM) e a própria anuidade da B3.

Os custos podem variar de acordo com o porte da companhia. De acordo com uma pesquisa realizada pela Deloitte e pela B3, a média anual dos custos diretamente relacionados a manutenção de companhia aberta é de R$ 800 mil para empresas com receita líquida de até R$ 300 milhões.

Como se preparar?

Com tempo, cautela e testando a água. É fundamental que a companhia comece essa nova etapa o mais preparada possível para o que vem adiante. E entender o mercado e potenciais investidores é chave aqui, para abrir a porta certa.

Comunicação com investidores Antes do IPO, é muito estratégico conversar com diferentes tipos de investidores e fundos. “Algumas empresas reportaram que, se pudessem voltar atrás, teriam gasto mais tempo com reuniões com potenciais investidores, para mostrar a realidade da companhia na prática”, conta Rafaela.

Esse contato com diferentes perfis de investidores é fundamental para bater o martelo e decidir quando seguir com o IPO. Por isso, vale muito a pena construir uma área de RI (Relações com o Investidor) estruturada e forte na empresa desde cedo — e incluí-la nas discussões e decisões estratégicas do negócio.

A Méliuz, por exemplo, fez um Pilot Fishing, uma espécie de primeira sondagem junto aos investidores, para testar a tese de investimento e ver como o mercado percebia a empresa. “Esse foi um passo super importante porque a gente foi colhendo feedbacks, e entendeu o que os investidores esperavam e quais eram seus principais questionamentos. Isso permitiu que a gente alinhasse melhor o pitch e o discurso, de acordo com cada perfil de investidor”, conta Luciano. “Além disso, nós queríamos ter sócios alinhados com a nossa visão para o longo prazo, e esse contato foi essencial para cultivarmos as relações certas para o IPO e para o follow-on”. Fazer esse trabalho de investor targeting, aliás, ajuda no momento de definir a alocação do book.

Dando um passinho atrás aqui, só porque não custa reforçar, é preciso se preparar também antes de cada uma dessas conversas. A companhia pode testar a água em um momento inicial, mas também está construindo potenciais parcerias para o seu mergulho — e ninguém quer que falte oxigênio aqui. O responsável pela área de RI, o management e todos os C-Levels da empresa devem ter a história da companhia muito alinhada e refinada. Saber comunicá-la de um jeito consistente e atraente pode ser vital.

Vale também ter um planejamento bem claro e explicar com profundidade qual é o objetivo da empresa com o IPO e como será esse novo momento da empresa. “É muito cobrado pelo mercado ter um plano que faça sentido para o uso do recurso da oferta primária”, diz Rafaela.

Cultura de capital aberto Mais exposição e mais alcance: quem estreia na bolsa de valores precisa lidar com esse equilíbrio. Sai em vantagem quem constrói desde cedo uma cultura que leve esses pontos em consideração.

O IPO é um marco, mas o pós-IPO demanda uma série de obrigações que essa cultura forte pode ajudar a resolver com mais suavidade. Ter um time alinhado e uma estrutura de governança que saiba apresentar a empresa ao mercado de forma ágil é uma super vantagem quando a empresa se depara com uma agenda de divulgações e relatórios frequentes. Nesse sentido, é bom, o quanto antes, criar também controles e processos para analisar e comunicar informações financeiras também. Não à toa, inúmeras startups passaram a divulgar seus balanços trimestrais publicamente mesmo antes de abrir capital, como uma forma de passar confiança e transparência ao mercado — entre os exemplos mais recentes, estão Uber, Airbnb e Nubank.

“Governança não é checklist” A frase é da Rafaela. Ainda que haja regras específicas de governança corporativa, seja pela regulamentação, seja pelas regras da própria B3, sair riscando esses requisitos sem pensar mais profundamente no negócio é um erro. Governança corporativa deve ser pensada e avaliada como algo que de fato pode propiciar benefícios e maiores controles para a empresa.

No caso da Méliuz, todos os executivos perceberam desde cedo a importância de ter uma governança sólida. A parte mais difícil foi encontrar as pessoas para ter a estrutura em si. Até setembro do ano passado, a empresa não tinha um setor jurídico interno ou uma estrutura de RI, além do Luciano. A alternativa foi contratar excelentes assessores até que os times fossem montados, e achar o talento certo leva tempo. Alguns dos conselheiros da empresa, aliás, vieram desses relacionamentos com assessores.

Sobre o conselho, mais um conselho (tu dum-tss) importante do Luciano: ele deve ser ajustado de acordo com o momento da companhia. “No caso da Méliuz, a gente mudou o conselho um pouco antes de fazer o IPO, para trazer pessoas com as expertises necessárias para executarmos o nosso plano. A gente tinha a ambição de fazer aquisições e trouxe membros com esse know-how”, explica Luciano. “O mais importante é sempre se perguntar como extrair valor do conselho para a operação, ao invés de buscar por pessoas que apenas podem sair bem na foto, mas não vão agregar valor”. Hoje, o conselho da Méliuz conta com sete integrantes.

Pós-IPO

Sino tocado (estamos perto do Natal, mas estamos nos referindo ao sino da B3 mesmo — aqui, um vídeo simpático), e a empresa parte rumo à sua nova etapa de vida, com muitos novos desafios e oportunidades.

Mais uma vez, vale ressaltar a importância de cultivar um bom relacionamento com os investidores, muitos dos quais podem ser pessoas físicas e consumidores da empresa, principalmente neste novo momento da B3. Cada tipo de investidor demanda uma comunicação diferente e, muitas vezes, é preciso fazer um trabalho educativo enorme para que tanto o investidor institucional quanto a PF entendam o seu negócio.

“Há um ano, ninguém sabia o que era cashback, o mercado não tinha analistas que conhecessem o setor, era um modelo de negócios que ninguém estava acostumado e tivemos que quebrar paradigmas. Para atrair pessoas físicas, fiz lives com influenciadores para um público pequeno, e é preciso traduzir o discurso para um outro linguajar. No fundo, as dores são as mesmas, mas é preciso falar de jeito adequado a cada perfil”, diz Luciano.

Ter esses dois perfis é visto com bons olhos pela Méliuz. Esse novo investidor que é um potencial usuário do produto pode agregar muito valor ao negócio. Hoje com 26% da base de acionistas como pessoa física, a Méliuz não tem um target ideal específico em termos de distribuição, mas de todo modo, Luciano acredita que é importante achar um equilíbrio nessa equação.

“Há a crença de mercado que pessoa física flipa mais, vende na queda, mas a minha experiência diz que é o contrário: quem vai mexer é o institucional”, conta. Com todos os acionistas, a empresa busca cultivar um relacionamento de longo prazo para atender a seus objetivos. Para isso, a área de RI faz reuniões frequentes com diversos investidores; entre 5 e 15 por semana, em média.

Colher e filtrar — Esses papos são essenciais para receber feedbacks que podem ser super valiosos. “Uma das grandes coisas de abrir capital é receber input do investidor, é a crítica, a pergunta”, defende Luciano.

Contudo, o próprio alerta que é preciso cautela e saber filtrar para não se deixar levar por qualquer tipo de opinião e/ou movimento de mercado. Em momentos de baixa, é comum que os executivos se perguntem o que estão fazendo de errado. Mas é preciso controlar a ansiedade para não tomar nenhuma ação precipitada ou comunicar algo de forma destrambelhada.

“Quando o preço da ação está caindo, é importante não tomar isso como um diagnóstico do negócio já de antemão”, diz Sonder. “Muitas vezes, a pessoa do outro lado está tomando uma decisão influenciada por uma série de fatores que nada tem a ver com o negócio”. No final do dia, o que é imprescindível é ter uma operação tinindo.

Outra dica importante é ser consistente com o que é prometido de entrega para os investidores. Essa é a chave para manter relações mais duradouras. “O cara tem que acreditar em você. Ele não precisa estar ganhando dinheiro agora, mas precisa enxergar que vai ganhar dinheiro no longo prazo”, explica o Luciano.

Aliás, consistência no discurso e nas ações é uma lição importante antes e depois do IPO. Mesmo no early stage, founders precisam ter muito cuidado com o que dizem e prometem, especialmente em suas redes sociais e, claro, com a imprensa. Isso pode evitar cobranças e questionamentos; cair em contradição abala reputações desde que a humanidade é humanidade. Mas é aquela velha história: quem não mente não tem muito a temer.

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