Passos fundamentais para construir uma cultura de confiança, com Rafaela Frankenthal, da SafeSpace

Canary
8 min readNov 25, 2021

E evitar ao máximo comportamentos inapropriados em uma empresa

“Há três coisas sobre confiança. Se você sentir que estou sendo autêntica, você, provavelmente, vai confiar em mim. Se sentir que tenho seriedade na minha lógica, é bem mais provável que você confie em mim. E se acredita que minha empatia é direcionada a você, é bem provável que confie em mim. Quando todas essas três coisas estão funcionando, temos uma grande confiança. Mas se alguma delas fica instável, se qualquer uma delas oscila, a confiança fica ameaçada.”

A frase de Frances Frei, professora da Harvard Business School, dá um bom cheiro do quão complexo é criar uma cultura de confiança em uma empresa. Muitas vezes, confiar é uma tarefa difícil no one-on-one — em uma organização, com pessoas agindo e pensando de formas diferentes, pode ser ainda mais complicado.

Em uma palestra no TED, de 2018, ela listou algumas medidas que implementou no Uber para criar um ambiente de trabalho mais amigável. E, a começar por ela mesma, contou que optou por usar a camiseta do Uber por 250 dias, como ato simbólico — e bem palpável — de vestir a camisa e acreditar na causa.

Por gestos como esse, Frances ficou conhecida por consertar a cultura da organização. Nesta entrevista, ela divide alguns aprendizados. Em última instância, seu papel foi ensinar as lideranças a promoverem mais confiança em toda a organização. Para isso, vale destacar dois pontos fundamentais: 1) é preciso ouvir com empatia; 2) é preciso respeitar a autenticidade das pessoas, desde que não invada a liberdade de outros, claro.

LEIA TAMBÉM: O que toda startup precisa saber sobre Cultura — com os founders de Loft, Méliuz, AppProva e dr. consulta

Parecem lições super básicas de convívio humano — na verdade, são! — mas volta e meia, é preciso reforçar o óbvio, com o perdão de parecer professoral aqui. Esses pontos devem ser mantras para a cultura de qualquer empresa, em qualquer estágio. Mas como fazer isso?

“Cada companhia deve encontrar e criar suas próprias regras e processos para tornar o ambiente de trabalho mais seguro”, diz Rafaela Frankenthal, co-founder e CEO da SafeSpace. O mantra é comum, mas o guru pode cantar em tons diferentes — e, como sempre, é melhor fugir de fórmulas prontas e achar a sua própria equação. De todo modo, é responsabilidade de todo(a) fundador(a) garantir que seus colaboradores estejam seguros e não sofram nenhum tipo de dano físico ou psicológico no exercício de suas funções — inclusive, há implicações legais aqui (mais sobre isso abaixo).

A Rafaela participou de um Canary Talks bem intimista, em outubro de 2021, com o intuito de trazer alguns conceitos sobre má-conduta em empresas e ensinamentos-chave, tanto para evitar quanto para lidar com situações de bullying e assédio no ambiente de trabalho. Abaixo, separamos os highlights dessa conversa.

Sobre más (ou péssimas) condutas

Começando por conceitos:

Bullying é a prática de atos intencionais e repetidos que podem causar dano físico e/ou psicológico a alguém. Normalmente realizados na frente de outras pessoas, têm o objetivo de humilhar a vítima.

Assédio, por sua vez, também é um comportamento abusivo associado a controle e poder. A diferença é que o assédio (moral e/ou sexual) está associado à posição social da vítima, como gênero, classe social etc.

Ambos tendem a começar em uma escala pequena e se tornam mais recorrentes e intensos ao longo do tempo. “Uma distinção importante é que o bullying, em geral, é coletivo: quem inicia a história influencia outras pessoas a fazerem o mesmo. Já o assédio tende a ser mais individual”, explica Rafaela.

Do ponto de vista jurídico, há outra diferença fundamental. Assédio, seja sexual ou moral, é crime; bullying, não. A título de curiosidade, um levantamento do Tribunal Superior do Trabalho (TST) mostrou que foram abertos, em média, 204 processos por mês na Justiça por causa de assédio sexual em 2020.

Um pouco mais sobre assédio
Desde Monica Lewinsky, lá nos idos anos 1990, muito se fala em assédio sexual. Conceituando aqui de novo, porque nunca é demais, assédio sexual é qualquer comportamento indesejado de natureza sexual, com o objetivo de perturbar, embaraçar, humilhar ou intimidar alguém.

Aqui, é preciso muita atenção. “Mesmo perguntar sobre a vida pessoal e sexual de uma pessoa pode ser considerado assédio. É sutil mas, dependendo da intenção e de como é feito, pode ter um impacto negativo”, diz Rafaela. Outros exemplos que podem ser caracterizados como assédio sexual: contar piadas obscenas ou fazer comentários sobre atos sexuais; compartilhar imagens ou vídeos impróprios; fazer comentários sobre a aparência de alguém, roupas ou parte do corpo; mandar e-mails ou mensagens sugestivos; e tocar no corpo de alguém de maneira inadequada.

E paquera no ambiente de trabalho? É possível e acontece! Rafaela defende que o assunto seja tratado com transparência e sem tabus. “A chave é consentimento. Pode parecer uma linha tênue, mas basta ver se as pessoas envolvidas topariam ir a um encontro ou se uma está claramente incomodada com as investidas da outra. É preciso ser explícito quando há flerte”, diz.

Menos lembrado, mas também um baita problema quando acontece, assédio moral é ofender, constranger ou humilhar alguém, de forma a atacar sua dignidade e personalidade, com o objetivo de enfraquecer, ridicularizar ou menosprezar a pessoa. Vai de usar apelidos vexatórios a espalhar fofocas e rumores. Mesmo se a intenção for fazer graça (uma piada de mau-gosto, digamos), esses atos podem ser considerados assédios. Pressionar alguém a agir contra a sua vontade ou impedir que se manifeste e execute o próprio trabalho são outros exemplos.

Em tempos de trabalho remoto, vale destacar que a conduta não se limita ao local físico da empresa. Um colaborador pode estar sendo assediado via mensagens de WhatsApp por um par ou líder. Não importa a ferramenta ou o canal, o que conta é o ato e a intenção.

“Outro mito muito comum é que assédio não pode ser feito por um amigo, ou que só acontece por superiores. Mas não é verdade. Pode acontecer entre pessoas que tinham uma relação de amizade e estão no mesmo patamar hierárquico”, explica Rafaela.

Medidas práticas para evitar

Algumas medidas práticas podem ser tomadas a priori, na tentativa de evitar que casos de assédio aconteçam na empresa. Ainda que não sejam garantias, podem ser boas formas de endereçar o assunto, para lá de importante, desde o early stage. Listamos as principais:

  • Coloque as regras do jogo de forma clara na mesa. É importante ter políticas de conduta, ética e comportamento que sejam acessíveis e fáceis de entender. A proposta é que todos saibam o que é aceito ou não e tenham responsabilidades estabelecidas.
  • Implemente um mecanismo para que as pessoas possam reportar más condutas. Não se trata de promover caça às bruxas ou bater palmas para o dedo duro, mas é essencial que os colaboradores tenham um canal seguro para relatarem se algo estiver errado. Isso ajuda a promover não só o bem-estar do indivíduo como o da empresa. “O incidente tem de acontecer mais de uma vez para a vítima classificá-lo como assédio. Então, é tão importante criar mecanismos muito bons para que as pessoas possam se colocar antes de a questão se tornar mais séria. É a melhor forma de a corporação identificar problemas antecipadamente e resolvê-los”, diz Rafaela.
  • Fale sobre o assunto, sem medo de tabus, com a equipe. Promover treinamentos sobre os comportamentos aceitáveis e inaceitáveis, e também sobre ética e inclusão, em geral, pode ajudar. Além disso, reforça o compromisso da empresa com o tema.

LEIA TAMBÉM: Investindo em políticas de inclusão: com Maitê Lourenço (BlackRocks), Guilherme Ribeiro (Loggi) e Ricardo Rodrigues (Social Miner)

Opa, algo errado! O que fazer?

Houve uma denúncia de caso de assédio. Qual é o próximo passo? Em primeiro lugar, é preciso lidar com isso com atenção. De novo apelando para o óbvio: colocar sujeira debaixo do tapete atrai barata, já diz a sabedoria popular.

“As empresas precisam implementar uma estrutura que permita que os casos sejam bem resolvidos, sem conflitos de interesse. Alguém precisa ser responsável por receber esse tipo de denúncia e deve saber o que fazer com o incidente”, defende Rafaela.

Não importa se essa pessoa vai ser da área jurídica, ou alguém do RH ou com formação em psicologia. Cada companhia pode ditar suas próprias regras, mas o fundamental é que tenha sensibilidade e saiba o que fazer a seguir.

Nesse momento inicial, Rafaela recomenda que founders e C-levels não se envolvam no assunto, para não comprometer a confiança. Mas eles podem participar depois da decisão sobre o que fazer com o ocorrido.

Tolerância zero, aliás, talvez não seja o melhor caminho. Pode gerar uma cultura de medo, sem espaço para o mínimo de descontração. Além disso, para a especialista, más condutas vão acontecer, inevitavelmente, de modo que é preciso dar às pessoas a chance de mudar o comportamento. A intenção conta, e muito. Se realmente não foi por mal, dá para pensar em uma mediação de conflito. Que não se repita e bola para frente, com cuidado e atenção a quem se sentiu ferido de alguma forma. De todo modo, é preciso escutar cada caso e cada envolvido com muita empatia.

Papel do founder

Identificar o que está incomodando os funcionários pode ser crucial para a saúde de uma empresa — especialmente no early stage, em que cada pessoa conta muito para colocar o negócio de pé e além. O(a) founder não precisa saber tudo o que acontece nem ser o primeiro a lidar com casos de má conduta, mas deve estar sempre disposto a ouvir, com muita empatia (voltando à história da confiança lá de cima).

Quando um problema bate à porta, de novo, é essencial olhar para ele. Negar que a questão existe é a pior postura que um líder pode adotar frente a um caso desse tipo. “É preciso sair de um mindset julgador sobre o que é certo e errado, e realmente entrar no mindset da escuta”, defende Rafaela.

Abaixo, alguns exemplos de frases que um(a) founder nunca deve usar, se quiser garantir uma cultura de confiança:

  • “Aconteceu porque você fez X, Y ou Z”: culpar a vítima é uma péssima saída. Além de ser uma forma de eximir a corporação da responsabilidade que ela tem de proteger seus colaboradores, pode dar mais força e justificativa ao agressor.
  • “Você demorou muito para relatar isso”: criticar a reação e o tempo da vítima não é legal. “Algumas pessoas podem realmente ter mais dificuldade de se colocar, por estarem lidando com sentimentos de vergonha, nojo ou estarem simplesmente confusas. Podem também ter medo de sofrer algum tipo de retaliação”, diz Rafaela.
  • “Isso não é grande coisa. Deixe de mimimi”: minimizar o sentimento de uma pessoa compromete — e muito — a confiança. Voltando a dizer o óbvio, incidentes de má conduta são subjetivos e indivíduos podem experimentá-los de maneiras diferentes.

Em resumo, founders devem começar por si próprios e vestir a camisa da confiança. Como líderes, devem se esforçar ao máximo para serem autênticos, racionais e empáticos. Voltando à Frances Frei, lá do começo desse texto, um conselho final:

“Para os líderes: é sua obrigação definir as condições que não apenas tornem o ambiente seguro para sermos autênticos, mas que seja acolhedor, que seja comemorado, e aprecie exatamente o que representa: a chave para alcançarmos maior excelência do que jamais imaginamos ser possível”.

--

--

Canary

Parceiro dos melhores founders na América Latina. Por aqui, compartilhamos os principais aprendizados de empreendedores(as) investidos(as) e de nossa rede.